A filósofa e escritora Djamila Ribeiro criticou a postura da população brasileira em entrevista feita pelo jornalista Fernando Rodrigues, apresentador do Poder em Foco. A escritora disse que o brasileiro reage mais ao racismo praticado em outros países do que no próprio Brasil. Lá fora, uma onda antirracista ganhou tração depois que 1 homem negro, George Floyd, morreu depois de ter sido asfixiado por um policial branco nos Estados Unidos. Diversas manifestações foram realizadas pelo mundo nas últimas semanas.
“Claro que a comoção em torno do assassinato de George Floyd precisava existir. Obviamente, precisávamos nos manifestar em relação a esse assassinato brutal. Porém, aqui no Brasil, esses assassinatos acontecem diariamente. A gente vive em um país que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado. Penso que no Brasil há uma naturalização sobre mortes de corpos negros e fatos periféricos.”
Djamila cita que duas semanas antes da morte de Floyd, em 19 de maio, o adolescente João Pedro Matos Pinto, 14 anos, foi baleado durante uma operação conjunta da Polícia Federal e da Polícia Civil no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro.
Segundo ela, houve movimentação pela morte do jovem brasileiro, mas em intensidade muito menor do que a feita por Floyd.
Para a filósofa, a discriminação no Brasil é como um “crime perfeito”. Djamila argumenta que muitas transgressões relacionadas à cor da pele são cometidas e naturalizadas porque as pessoas não enxergam nisso um erro. Com isso, fica mais difícil avançar em políticas de equidade e inclusão de negros na sociedade.
Mestre em filosofia política pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Djamila avalia que o conjunto de atos antirracistas de agora é o 2º maior desde a luta pelos direitos civis dos EUA, no período de 1955 a 1968. O diferencial deste momento é que há mais pessoas brancas participando das manifestações. É o que ela chama de “branquitude crítica”.
“A gente entende que é um país racista e que ali existe uma série de questões. Mas talvez as pessoas brancas estejam discutindo mais essas questões de branquitude crítica [indivíduo branco que desaprova publicamente o racismo]. Aqui no Brasil também há esse debate, mas não em larga escala. O Brasil dificulta muito por conta dessa visão romântica de uma pseudo-harmonia das raças”, diz.
Os EUA tiveram no século passado um sistema de apartheid legal, institucionalizado por leis. Os norte-americanos negros entenderam que havia algo errado e foram às ruas. Já no Brasil a sociedade sempre foi segregadora de maneira tácita, sem nada formalizado em regras legais.
Djamila cita a ativista negra Beatriz Nascimento (1942-1995) e diz que no Brasil criou-se um “emaranhado de sutilezas” para dizer que não era um país racista, mas sim um local no qual todos vivem harmoniosamente.
“Isso dificultou, de fato, uma maior consciência no Brasil. É importante dizer que os movimentos negros estão, historicamente, denunciando essa resistência em debater o sistema. O Brasil só foi considerar a escravidão como um crime contra a humanidade em 2001, na conferência de Durban [África do Sul]. A gente percebe que as coisas no Brasil foram muito difíceis”, diz a escritora.
Djamila é autora de diversos livros. O mais recente, “Pequeno manual antirracista” (2019), integra a lista dos mais vendidos no país. Nas redes sociais, ela tem mais de 1 milhão de seguidores.
Em meio ao crescente debate sobre a discriminação racial, Djamila aumentou seu leque de exposição. O ator Paulo Gustavo cedeu o perfil dele no Instagram, com 13,5 milhões de seguidores, para ela falar sobre o tema. “Gente, diante dessa realidade tão brutal, no mês de junho, meu Instagram será totalmente dedicado a abordar a questão racial no Brasil! Portanto, resolvi ceder minha conta do Instagram à escritora e ativista Djamila Ribeiro”, escreveu o ator, em nota, no início do mês.
SEGURANÇA DEVE SER DEBATIDA
A filósofa diz que o tema segurança pública brasileira precisa de debate urgente. “Infelizmente, nós temos uma segurança pública pautada na repressão, na criminalização dos territórios periféricos. Essa guerra às drogas que nada mais é guerra às populações negras e periféricas. É necessário discutir descriminalização das drogas, desmilitarização das polícias. O papel do Estado nesses espaços não pode ser só o papel da repressão. Tem que ser o papel de criar políticas públicas nas áreas de educação, moradia, saneamento básico. Então, esse debate da segurança pública é urgente”, afirma.
Depois de dias de atos antirracistas nos EUA, o presidente Donald Trump assinou decreto promovendo mudanças no sistema policial, como a limitação do uso de sufocamentos como técnica de imobilização e a criação de 1 banco de dados nacional sobre conduta policial imprópria. A população local pede medidas mais incisivas, mas o comportamento de Trump foi considerado um avanço.
Levantamento mostra que em 2019 a polícia brasileira matou 17 vezes mais negros do que a dos EUA. Os norte-americanos mataram 259 negros no ano passado. No Brasil, foram 4.353.
Djamila defende um olhar antirracista nas políticas públicas. Pede diversas ações para diminuir a matança e aumentar inclusão dos jovens na sociedade.
“Há uma série de questões que a gente precisa discutir – na área de segurança pública é fundamental. Mas também na ampliação das políticas de ações afirmativas e não na redução delas que, infelizmente, a gente tem visto no Brasil”, diz.
“Às vezes se entende que criar uma secretaria é suficiente ao pensar na questão racial. Claro que é necessário ter, apesar de a Secretaria de Igualdade Racial ter passado a existir anos atrás. Mas é necessário pensar políticas de enfrentamento ao racismo com todas as instituições”.
CASO MIGUEL
Djamila comentou sobre o caso do menino negro Miguel Otávio Santana da Silva, 5 anos, que morreu em 2 de junho após cair do 9º andar de 1 prédio de luxo na região central do Recife (Pernambuco).
O menino acompanhava sua mãe, a doméstica Mirtes Renata Souza, no apartamento onde ela trabalhava. A mãe foi passear com os cachorros da patroa, Sarí Corte Real, e deixou o filho aos cuidados dela. Miguel começou a chorar e entrou no elevador do prédio, no 5º andar, para buscar a mãe ―com o consentimento da patroa.
“No momento de pandemia, em que as creches estão fechadas, essa mulher tem que trabalhar, mesmo com o isolamento social –já começa o erro aí. Ela tem que levar o seu filho e não há nenhum cuidado com uma criança de 5 anos. A gente percebe também porque a patroa estava apertando o botão da cobertura e deixando o menino sozinho no elevador, o que é contra a lei. Não houve um olhar de entender que era uma criança que precisa de cuidados”, analisa a escritora.
“A mãe dela, da dona Mirtes, que era avó do Miguel, também trabalhava na casa. A gente vê o ciclo de exclusão se mantendo. Um país que no pós-abolição, por mais 3 séculos, a população negra segue trabalhando e criando as riquezas do país sem ter acesso a essas riquezas. Que no pós-abolição não houve nenhuma medida de reparação. Saíram do trabalho forçado e foram para o trabalho doméstico. Há, por falta do Estado e de políticas, esses ciclos se perpetuando e esse número altíssimo por volta de 7 milhões de mulheres negras ocupando essa função”, diz.
Djamila ainda faz um paralelo do caso com a escravidão. “É importante dizer que no período da escravidão as mães negras não tiveram direito de maternar os seus filhos. Essas crianças também eram vendidas como mercadoria e não tiveram direito à infância. Quando a gente olha a realidade das empregadas domésticas, muitas têm que dormir nas casas e também não têm o direito de maternar os seus filhos.”
A patroa de Mirtes foi presa em flagrante, pagou uma fiança de R$ 20.000 e responde em liberdade por homicídio culposo, quando não há intenção de matar.