Foram 219 dias em uma cama de hospital, sete meses de vida entre as quatro paredes de um quarto branco, monitorado em tempo integral, sem ingerir alimentos sólidos ou água. O advogado Guilherme Kovalski, 36 anos, passou mais da metade de um ano lutando contra a Covid-19.
O paciente perdeu 30kg, teve longas paradas cardíacas e os médicos chegaram a chamar a família para se despedir dele. Guilherme, porém, superou a doença e teve alta do hospital Marcelino Champagnat, em Curitiba (PR), em fevereiro, tornando-se um caso raro.
Em geral, pacientes com esse tempo de internação acabam falecendo, explicam médicos que tomaram conta de Guilherme. “Trata-se de um caso totalmente atípico. Nós achamos que íamos perdê-lo várias vezes”, afirma o intensivista Jarbas da Silva Motta Junior.
Guilherme passou 184 dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), com 90% do pulmão afetado. No início da pandemia, em média 25% dos pacientes internados em leitos clínicos no Hospital Marcelino Champagnat evoluíam para a UTI.
O número, porém, vem aumentando e, só no mês de março, 38% dos pacientes internados foram para a unidade de terapia intensiva. Além disso, o tempo de internamento na terapia intensiva é mais de quatro vezes maior.
“Os casos têm sido cada vez mais graves, pois há novas cepas que debilitam mais o paciente. Antes, eles ficavam em média três ou quatro dias na UTI, agora ficam 14 dias. Isso ajuda a entender por que tem faltado vagas”, explica o médico.
Em 25 de julho, Guilherme relata ter acordado com os olhos vermelhos e achou “um pouco estranho”, mas não se preocupou. No dia seguinte, veio a febre e a necessidade de procurar atendimento médico, em um hospital particular de Curitiba, onde ele vive com a mulher e as duas filhas.
“O médico fez todos os procedimentos e disse que provavelmente não era Covid, pois o pulmão parecia bem. Indicou tomar muito líquido e voltar para casa. No dia seguinte, retornei com uma piora e já me deram o que chamam de ‘tratamento precoce’, a combinação de cloroquina, ivermectina e zinco”, relata. Daí em diante o estado de saúde de Guilherme só piorou.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) alerta para a inexistência de qualquer tratamento precoce para o coronavírus com comprovação científica. No Brasil, reações adversas à cloroquina disparam 558% durante a pandemia. Também houve registro de mortes por hepatite medicamentosa relacionada à aplicação do “kit Covid”.
O intensivista Jarbas da Silva Motta Junior, que cuidou de Guilherme, afirma que não é possível atestar se a piora no quadro foi ocasionada pelo consumo desses medicamentos. “Há diversos estudos que dizem que ‘tratamento precoce’ não funciona. Eu compartilho da opinião de que isso leva inclusive a uma demora em procurar o hospital e pode piorar o quadro. Mas é difícil dizer com certeza as causas”, pondera.
Em 27 de julho, Guilherme deu entrada no hospital Marcelino Champagnat para tratar da Covid-19. Tinha febre, delirava e já estava com um quadro grave de enfermidade.
“Naquela noite tive embolia pulmonar e no outro dia de manhã explicaram a necessidade de intubar. No segundo dia tive embolia pulmonar e foram 16 dias intubado e mais 15 dias em coma. Foi uma luta, tenho 36 anos e sou jovem, meu corpo era para reagir muito bem, mas houve complicações”, relata.
Após esse momento, o advogado passou por uma sequência de complicações. O corpo foi infectado por uma bactéria e o tratamento teve de voltar à estaca zero. Depois, vieram paradas cardíacas, uma delas com mais de 20 minutos de reanimação.
“Acharam que eu teria sequelas neurológicas, mas graças a Deus isso não aconteceu. Fiquei sete meses sem tomar um gole de água e isso me deixou muito fraco, não conseguia respirar, engolir, evoluir no quadro. Passei por várias cirurgias para drenar o pulmão e retirar coágulos”, conta.
Guilherme define a Covid-19 como uma doença traiçoeira, com altos e baixos muito imprevisíveis durante o tratamento. “Dava um passo à frente e dois para trás. Meu corpo demorou cinco meses e meio para começar a reagir. Todos acharam que eu não ia sobreviver.”
A todo momento, ele buscava forças na ideia de estar presente em momentos importantes na vida das filhas, Larissa, 2 anos, e Letícia, 8, e da mulher Jaqueline. “Cheguei ao limite, mas não desisti de viver. Antes da internação, vi a Larissa se preparar para dar os primeiros passos, mas não tinha visto-a andando, perdi sete meses dessa fase. Eu só pensava em poder acompanhá-las em momentos especiais. Em ver a Letícia completar 15 anos, por exemplo”, relata.
O aniversário de 36 anos de Guilherme, em 11 de fevereiro, quando ele já havia deixado a UTI, foi comemorado no hospital. A equipe de profissionais de saúde cantou os parabéns e levou esperança ao paciente em internação. Em 21 de fevereiro ele teve alta com uma celebração emocionada, registrada no vídeo abaixo. “Todo mundo chorou muito quando fui embora, nós criamos um vínculo muito forte”, descreve o paciente.
A gente acaba se apegando aos pacientes. Posso dizer que as pessoas da família do Guilherme são minhas amigas agora
JARBAS DA SILVA MOTTA JÚNIOR, INTENSIVISTA
O advogado é de família religiosa e diz que, além de toda a estrutura médica e dos cuidados que recebeu, as orações e as chamadas de vídeo cheias de afeto foram essenciais no processo de recuperação. “Ainda não ando, faço muita fisioterapia e tenho um longo caminho pela frente, mas meu cérebro está perfeito. Tenho muito a agradecer”, diz.
"A gente sente muito por estar longe da família, mas os profissionais da saúde são anjos na nossa vida. Ganhei grandes amigos, pessoas que não me conheciam mas cuidaram como se fosse um filho" - GUILHERME KOVALSKI
Guilherme relata sentir-se como se tivesse renascido e diz que a vida não será a mesma daqui para frente. Ele, que é advogado criminalista, levava uma rotina agitada e agora pretende equilibrar melhor o tempo entre o trabalho e a família.
“Não tem como não mudar depois de uma experiência dessa. Todos os detalhes têm muito valor agora. Hoje eu poder sentar com minhas filhas e brincar, almoçar com a minha família, é algo que não se compra.”
Ele também percebeu que pequenos detalhes fazem toda diferença em uma vida. O primeiro pedido feito por Guilherme após sair do estado crítico foi suco de melancia. “Você não sabe a felicidade que é se alimentar depois de sete meses, até tomar um simples copo de água”.
Guilherme deixa um alerta: “Sempre me cuidei, usava máscara e mesmo assim eu peguei. Imagina quem está na rua sem necessidade e acha que é uma brincadeira, que é uma doença leve. Hoje não existe mais grupo de risco. É absurdo desvalorizar uma doença tão grave.”